Essa coisa, ultrapassada, do amor e das referências
«Cada vez me capacito mais de uma coisa: ídolos, referências ou símbolos não são feitos de defesas, golos ou juras de amor eterno…isso é dever profissional ou forma fácil de agradar. Ás vezes confundem-se, injustamente, estes conceitos sem que se tenha a garantia do carácter da pessoa», João Benedito.
Eu conheci o Sporting através da rádio. E dos jornais, que me ajudavam a aprender a ler. Tinha cinco anos e, nessa altura, falava-se muito do amor à camisola, a mesma que eu pedi como prenda, dois anos depois. Falava-se de craques e de ídolos. Dizia-se que o Manuel Fernandes era a alma do Leão, que o António Oliveira era um dos melhores jogadores da nossa história, que o Jordão era elegante, que o Carlos Xavier e o Mário Jorge eram diamantes a lapidar e que o Meszaros tinha um talento para defender bem maior do que o bigode com que jogava.
Depois apareceram Venâncio e Morato que, segundo os mais velhos, eram Leões de verdade. Eu nunca gostei muito deles como jogadores, mas defendia-os como se fossem os melhores do mundo. Também apareceu um gajo com nome de escritor, um tal de Rodger Wylde, e outro com nome giro para ser boneco do Match Day, o Boskovic, que, mal sabia eu, haviam de ser uma espécie de pré-aviso para a carrada de estrangeiros sem qualidade que, desde essa altura, foram tendo a honra de vestir a mais bela camisola do mundo. E, qual cometa, apareceu um puto (bem, o puto era eu, diga-se em abono da verdade) cheio de estilo, chamado Futre. Eu só ouvia falar do Futre. O mesmo que me confundiu, ao aparecer a celebrar golos com a camisola de um clube de que ninguém gostava. Felizmente havia o Manel, sempre lá, como referência de bem jogar e de amor à camisola.
O amor foi reforçado quando apareceu Damas. E o que eu chorei quando, no México 86, disseram que ele tinha tido culpa de perdermos contra Marrocos. Damas, Damas, Damas, até hoje Damas, símbolo desse tal amor, referência, craque, relegando para o banco o enorme e ilusório Katzirz, que animava o velhinho Alvalade tocando com o pé na barra durante o aquecimento. Havia, também, Litos, capítulo primeiro de toda uma história de eternas promessas que nunca chegam ao patamar vaticinado, e dois gajos com nome que ficava no ouvido; Saucedo e Eldon. Seguiu-se Raph Mead, ídolo de muito boa gente, e Duílio, ensaiando o samba no centro da linha mais defensiva. E o Manel, sempre lá. Mais o Jordão. E o Damas, claro.
Bem no coração do jogo, ia-se impondo uma espécie de arrastão, chamado Oceano. Tosco, como um artesão sem jeito, impressionava pelo que corria, pelo que destruía, pela força, pela dedicação. A camisola ficava-lhe bem. Mais à frente, um mexicano chamado Negrete, inspirava-me a tentar pontapés acrobáticos sem ter noção de que alcatrão não é relva. Marlon Brandão veio rotulado de craque, mas transformou-se num claro exemplo de que é bem mais fácil sê-lo com camisolas que pesam menos do que a verde e branca. E os dois estarolas, Houtman e McDonald, quais gigantes de torres plantados na área, incapazes de, juntos, valerem meio Manuel Fernandes (que por lá continuava, imagine-se. Com o Damas, claro).
Mas o Manel estava cansado, e deixou o balneário entregue a Damas e Venâncio, com Oceano, Morato e Xavier como guarda de honra. E tentou-se suprimir o vazio deixado na frente com o goleador Paulinho Cascavel, com o buliçoso Tony Sealy (podia ser irmão do Tom Jones) e com um puto chamado Cadete que, depois de crescer, tratou de manchar as memórias de uma noite mágica à chuva, frente ao Celtic, festejando estupidamente, naquela que foi a sua casa, um golo com a camisola dos principais rivais.
Estávamos no final da década de 80 e, num ano em que chegava um ex-lampião bom de bola, Carlos Manuel, um avançado sueco, Eskilsson, irmão gémeo do vocalista dos Europe, e despontava um jovem chamado Paulo Torres, a minha galeria de notáveis ganhava três nomes: Ricardo Rocha, patrão da defesa; Silas, craque, craque, craque; e Douglas, provavelmente o meu jogador preferido da minha história verde e branca, que se juntou a Oceano para tomar conta do meio-campo. Para todos os efeitos, eu passei a ser o Douglas em todas as peladas. E a querer jogar de meias em baixo e sem caneleiras, nos meus primeiros passos como jogador federado (sim, também usei cabelo à Douglas).
Fiquei com Douglas, mas perdi Damas. Felizmente, a memória tornou-se menos dolorosa por, para o seu lugar, ter chegado um gajo com pinta de maluco, Ivkovic (iv-iv-ivkovic! iv-iv-ivkovic!), o tal que, em pleno San Paolo, defendeu um penalti do Maradona e que viria a repetir a gracinha ao serviço de uma das selecções de que mais gostei até hoje, a Jugoslávia. Na frente, um tripas que resolveu vir terminar a carreira com estilo, Fernando Gomes, ao centro um gajo sem jeito nenhum para a bola mas com um pontapé inacreditável, Valtinho, e os primeiros passos do primeiro dos dois melhores do mundo por nós formados, Luís Figo.
Veio Luisinho, tão craque que, hoje, há quem tente ter nome igual e só consegue fazer merda. E veio um treinador porreiraço, Marinho Peres, a quem ainda marquei um golo de bicicleta, numa jogatana nas areias da Caparica. Havia um Careca, tão irritante, e a oportunidade de ver chegar duas referências polvilhadas com mais amor do que canela sobre pastéis de belém: Balakov, jogador de nível mundial, e Iordanov, o eterno mochilas (“primér gol párá Sporting, estar muito féliz”, dizia ele). Idolatrei Bobby Robson, treinador tão fixe como um jogador, odiando Sousa Cintra por tê-lo despedido. Fiquei com o nem sempre compreendido Juskowiak, com um dos melhores do mundo que nunca chegou a sê-lo, Cherbakov (e o que eu chorei, incapaz de estudar para o teste de alemão dessa tarde, depois de saber que um gajo pouco mais velho que eu, comungando a mesma paixão, ia ficar preso a uma cadeira de rodas) e guardei mais um nome dos meus jogadores preferidos, Valckx. Paulo Sousa chegou com requintes de malvadez quase tão grandes como a sua qualidade futebolística (outro de nível mundial), mas um tal de Carlos Queiroz conseguiu deitar a perder o que teria sido uma época de sonho. Vivíamos a época dos craques, daqueles que teriam vendido infindáveis camisolas se as camisolas tivessem nomes como hoje. Aos que já lá estavam, juntaram-se o senhor Marco Aurélio, Naybet e Amunike. E apareceu um tal de Ricardo ‘Coração de Leão’ Sá Pinto.
Ia-se cantando “u-a, Outtara!”, para entreter a malta, tentando esquecer o desaparecimento de referências. Oceano e Iordanov aguentavam o barco, Sá Pinto dava coração, e Pedro Barbosa começava a dividir as bancadas. Um jovem chamado Beto celebrizou o festejo de golos agarrando o símbolo do Leão, Rui Jorge conquistava-nos, e Acosta aterrava em Lisboa, fazendo-me sonhar com as compilações de golos que acompanhavam a sua chegada. Schmeichel, de braços abertos ocupando meia capa de jornal, deixava-me de coração aos pulos. Um puto, Duscher, entrava para o meu top 5 de jogadores preferidos. E André Cruz era pedra basilar de uma das maiores alegrias que senti até hoje. Tivemos Babb, tivemos João Pinto (um bom exemplo de saber não cuspir no prato onde comeu), tivemos Jardel, mas eu gostava mais de Quaresma, de Hugo Viana e de Niculae. Fomos campeões. E apareceu Cristiano Ronaldo, o segundo a conquistar o mundo com a marca do Leão, até hoje exemplo pela forma de quem lhe deu bases. Paulo Bento acompanhou o surgimento de CR, e, para lá de outras questões, mostrou ser irrepreensível no que toca a respeitar a camisola verde e branca.
Entramos na última década. E, para lá de Pedro Barbosa, de Beto, de um podia ter sido, mas não foi, chamado Miguel Veloso, e do regresso de Sá Pinto, apenas me surgem três nomes com inegáveis ligações ao coração dos adeptos leoninos: João Moutinho, Izmailov, e Liedson. Muitas das nossas esperanças, numa história recente, passaram pelos pés destes três jogadores. Cada um à sua maneira, com a conivência de quem nos dirige, para quem futebol é negócio e que mostra ser incapaz de ver a clara tentativa do fcp em trepar no futebol português à conta do “empequenecimento” do Sporting, souberam atirar a matar sobre os já tão castigados adeptos.
Está visto que isto só nos magoa a nós. Que lágrimas na despedida, só valem as nossas. É enxugá-las (felizmente que a minha filha não tem idade para ter tido um deles como ídolo, e que eu não tenho que amparar-lhe tal desilusão). E, enquanto rezamos para não serem vendidos, a preço de saldo, os jogadores que ainda nos transmitem alguma alma, refugiemo-nos nas mãos de um tal Rui Patrício, esperando que as mesmas embalem e defendam uma nova fornada de Leões, capazes de voltar a fazer-nos acreditar nessa coisa, ultrapassada, do amor e das referências.
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