5 de março de 2012

A irresponsabilidade trouxe-nos a este ponto

O modelo social europeu está morto. Morto pelo desemprego

Não há nada como a sinceridade. E Mario Draghi, o presidente do Banco Central Europeu, teve, no mínimo, um momento de sinceridade ao dizer ao Wall Street Journal que o modelo social europeu está morto (“is already gone”). Porquê? Por causa das taxas de desemprego, sobretudo do desemprego jovem. “Houve um tempo em que o economista Rudi Dornbush costumava dizer que os europeus eram tão ricos que podiam pagar para não se trabalhar”, prosseguiu Draghi, “mas esse tempo já passou”. O líder do BCE não foi apenas sincero, foi realista.

Só por hipocrisia ou por discurso ideológico se pode pretender que existe um “modelo social” numa área económica em que o desemprego entre os jovens chega por vezes aos 50 por cento (caso de Espanha) ou afecta mais de um terço da população activa dessa idade, como sucede em Portugal. Mesmo que todos os cidadãos desempregados recebessem um subsídio – o que sabemos não ser possível (não há dinheiro) nem desejável (pois desincentivaria a procura de emprego) -, a verdade é que um desemprego com tal dimensão corresponde a uma forma extrema de exclusão social. Por excluir uma fatia considerável da população dos mecanismos de integração proporcionados pelo trabalho e pela percepção de que se é útil. É por isso que temos de perceber como chegámos a este estado desgraçado.

Aquando da aprovação do Acordo de Concertação Social houve em Portugal – e no comentariato nacional – uma espécie de unanimidade: o que fora aprovado e era bom para os empregadores teria de ser, ao mesmo tempo, mau para os trabalhadores. O que uns tinham ganho, os outros tinham perdido. Foi como que uma encarnação moderna do velho preconceito da luta de classes, um preconceito que choca com factos simples.

Quando olhamos, por exemplo, para os elevados níveis do desemprego jovem em Portugal ou em Espanha, convém, por exemplo, ver onde é que os seus mercados de trabalho são diferentes, digamos, do alemão ou do francês. Foi isso que fez na última edição da The Economist com base em vários estudos comparados. E o que é que esses estudos mostraram? Que em Espanha (que tem características muito semelhantes a Portugal) a existência de leis laborais muito rígidas, ferreamente defendidas pelos sindicatos, levou à criação simultânea de fórmulas de emprego proporcionalmente muito flexíveis. O resultado foi um mercado de trabalho dual, um muito protegido e outro totalmente desprotegido. No primeiro destes mercados estão os trabalhadores mais velhos e sindicalizados, no segundo os mais novos. A simples existência desta dualidade no mercado laboral terá induzido, de acordo com um dos estudos citados, uma perda de 20 por cento da produtividade no sector transformador. Mais: como os trabalhadores com contratos rígidos se sentem mais protegidos, tendem a reivindicar maiores aumentos salariais, o que contribuiu para ajustamentos desproporcionais (não é por acaso que até uma figura como o nobelizado Krugman defende que em países como Portugal ou a Espanha os salários reais têm de baixar 20 por cento em comparação com os da Alemanha).

Mas há mais efeitos perversos, todos eles fatais para o nosso “modelo social”. Um desses efeitos perversos é baixa da natalidade (jovens com empregos precários não arriscam ter filhos ou nem sequer saem de casa dos pais) e o agravamento do que já podemos definir como uma crise demográfica. E essa, como já foi percebido na Europa do Norte, é seguramente um dos principais inimigos do Estado providência tal como o concebemos.

Mesmo assim anda por aí uma insuportável zoada que atribui todos males do desemprego à falta de “políticas de crescimento”. Ontem mesmo, 18 líderes socialistas da União Europeia assinaram uma carta dirigida ao Conselho Europeu em que se defende que se deve “redireccionar do investimento público e privado” para o sector industrial, claro que em “áreas com grande potencial de crescimento”. Não se conhecendo as empresas privadas que os pares de Rubalcaba, Papandreou ou Seguro possuem e onde possam, por sua iniciativa, “redireccionar” os investimentos, o que sobra do gentil conselho é, no essencial, mais do mesmo, isto é, mais investimento público e mais subsídios.

Para quem eventualmente tenha estado distraído, foi exactamente isso que foi estabelecido na famosa (e fracassada) “estratégia de Lisboa”, ainda António Guterres andava por estas paragens, foi isso que Portugal andou a fazer nas últimas décadas com os resultados que se conhecem, e foi isso que se sugeriu a seguir à crise de 2008 e que ajudou a aprofundar a crise das dívidas soberanas (a Alemanha, que na altura disse não a essa política de “investimento”, safou-se…). Números recentes do Banco de Portugal são também muito instrutivos a este respeito: na nossa “década perdida” de 2000-2010, a abundância de crédito barato e as políticas públicas erradas fizeram com que apenas seis por cento do total dos empréstimos bancários fossem para o sector transformador, que é também o sector exportador, enquanto as obras públicas e o imobiliário consumiam 70 por cento do dinheiro disponível.

Não são políticas de investimento, de subsidiação, de obras públicas ou de “fomento industrial” que criarão empregos duradouros. Como escreveu recentemente no Wall Street Journal Arnold Kling, um economista americano que criou um dos primeiros sites de comércio electrónico do mundo, não será “mais investimento público que trará de volta os ratings triplo-A”, antes um ajustamento das economias que só será possível “através do esforço descentralizado dos empreendedores”. Porquê? Porque os mecanismos da inovação que permitem aumentar a produtividade e oferecer mais aos consumidores por menos dinheiro – no fundo os motores da economia de mercado – só funcionam através de múltiplos processos de tentativa e erro até que alguém descubra novos processos de produção e de comércio mais rentáveis.

Como não há forma de adivinhar, muito menos de subsidiar, processos económicos que ainda nem sequer foram descobertos, o remédio não está em mais subsídios e mais paternalismo público, antes em mais concorrência e em mais dinheiro disponível na economia, ou seja, em menos impostos. Um exemplo: em vez de estarem a pedir à Alemanha para ser mais consumista, os outros europeus deviam exigir que abrisse à concorrência o seu mercado de serviços (que é ineficiente), algo que só agora, através a carta dos 12 líderes, começa a ser feito.

Sempre que escrevo sobre o modelo social europeu recordo-me de uma entrevista com o desaparecido Ernâni Lopes já nos idos de 2004. Disse ele na altura – e já passaram oito anos… – que “o modelo social europeu ou muda, ou desaparece”. Porquê? “[Não se pode] passar de uma realidade em que tinha uma população jovem e agora tenho uma população duplamente envelhecida – mais velhos e menos crianças -, em que tinha o PIB a crescer a cinco por cento para outra em que cresce a dois e meio, de um tempo em que tinha pleno emprego para um tempo em que tenho desemprego endémico e, por fim, de uma época em que a economia era altamente competitiva para outra em que tem dificuldades de afirmação a nível mundial, e pensar que tudo pode ficar tudo na mesma.”

Alguns países europeus conseguiram, nas últimas duas décadas, começar a alterar de forma radical o seu modelo social. A Alemanha, mas sobretudo a Suécia, são bons exemplos. Outros agarram-se, infelizmente, a uma jangada cada vez mais esfrangalhada, chegando a propor – como fez o candidato presidencial do PS francês, François Hollande – que se volte atrás na idade na reforma.

Se não percebermos estas realidades, nunca passaremos de dom quixotes a combater moinhos de vento, nunca entenderemos porque uma crise que começou nos Estados Unidos afectou sobretudo os países mais endividados e menos competitivos da Europa, nunca deixaremos de combater os mesmos de quem dependemos para o financiamento do modelo social, isto é, os famosos e odiados “mercados”.

Como reconheceu Draghi, houve um tempo de glória e riqueza europeia que acabou. Esse tempo não voltará, porque o mundo é global e deixou de ser eurocêntrico. Mas ainda podemos ter um modo de vida confortável se não repetirmos os erros e excessos do passado recente. Os erros que tantas sereias querem que voltemos a cometer.

Público, 2 Fevereiro 2012

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