5 de agosto de 2014
UE,BES,os milhões e a nossa direita
A direita deixou de ser patriótica
A direita deixou de ser patriótica para ser internacionalista, na versão europeísta.
À partida, faço uma prevenção e uma precisão iniciais. A prevenção é que a designação de “direita” e a dualidade “direita/esquerda” não são nos dias de hoje termos muito precisos e úteis do ponto de vista analítico, mas uso aqui o termo “direita” por facilidade e comodidade, num mero sentido descritivo. Designa essencialmente o PSD e o CDS, mas, e aqui já se revela por que razão o termo é ambíguo, podia-se incluir também o PS nesta matéria.
A precisão é que uso o termo “patriotismo” num sentido vago de um sentimento comum de partilha a uma mesma comunidade com identidade histórica e nacional, linguística, cultural, territorial, que define fronteiras e interesses comuns e que pressupõe que esses interesses têm que ser defendidos num quadro de competição ou conflitualidade com outros interesses. É o sentimento de risco permanente, logo de defesa activa, dos interesses de uma comunidade nacional, que é o elemento dinâmico daquilo que se possa chamar patriotismo. Penso que isto chega para não entrar em grandes discussões identitárias.
A chave deste processo de abandono da noção de Pátria encontra-se no PSD, porque é aí que há uma significativa mudança. O CDS segue por arrasto, embora no caso do PSD a crise patriótica seja a da sua componente partidária e no CDS seja mais institucional e do Estado. Mas a mudança política centra-se no PSD (e no PS), acompanhando a evolução do “internacionalismo” clássico da tradição comunista para um “europeísmo”, muito evidente no Livre e em parte do Bloco. Por uma daquelas ironias em que a história é fértil, o PCP, perdida a referência internacionalista da URSS e do comunismo mundial, acaba por ser nos dias de hoje o mais patriótico dos partidos e aquele que mais resiste à deslocação dos centros de poder nacionais para o quadro europeu. Fê-lo e fá-lo por razões políticas instrumentais, mas não só. Na história do PCP, o quadro nacional sempre esteve presente na ideologia e na política e o que é muito importante, no imaginário da “indústria nacional”, do “pão português”, muitas vezes o reverso do “trigo” das Campanhas do Trigo do Estado Novo. A questão é que nessa tradição também estava o PSD e deixou de estar.
As mudanças do PSD com a ascensão ao poder de um aparelho profissionalizado e de carreira, com origem nas “jotas”, e que no poder, e com o poder, atrai alguns jovens intelectuais ultraconservadores, são muito relevantes. O PSD foi na sua origem um partido que foi buscar ao socialismo moderado, à social-democracia, à doutrina social da Igreja, a sua âncora para evitar colocar-se à direita do espectro político, onde não queria que o colocassem, e onde não queria estar. Esta intenção é tão evidente nos seus fundadores, que nem vale a pena perder muito tempo a nomeá-la. Não foi instrumental para acompanhar a viragem à esquerda do sistema político pós-ditadura, como hoje se diz, podendo ser deitada pela borda fora logo que a situação mudasse. Foi substancial e de fundo e impregnou o PSD de uma tradição, de uma linguagem e uma simbólica, que ainda hoje atrapalham os seus próceres “neoliberais”.
Mas o nascente PPD não se teria tornado popular se se ficasse apenas por esta estratégia de afirmação ideológica, com origem em profissionais liberais e intelectuais, e não fosse mergulhar no tecido social português profundo, onde encontrou uma identidade que fez a sua história. É por isso que o programa identitário do PSD é o da sua génese no PPD inicial e feito por Sá Carneiro e é o “programa não escrito”, a sua história. E aí outras realidades emergiram. Duas são do “contra” e uma é do “pró”.
As do “contra” são fáceis de identificar: uma é o anticomunismo, outra é a hostilidade à Maçonaria. Ambas têm ambiguidades, principalmente a segunda, dado que houve sempre mações no PSD, a começar por uma parte do republicanismo e oposicionismo histórico mais conservador que aderiu ao partido, a nível nacional e local. Mas se havia mações, da Maçonaria tradicional do Grande Oriente Lusitano, essa era uma opção individual, mantida com uma enorme discrição e que em nada marcava o rank and file partidário, que detestava a Maçonaria.
Esta é uma grande diferença com a actualidade, em que uma parte importante da direcção política e do aparelho do partido pertence à Maçonaria, e de forma muito significativa às novas obediências maçónicas surgidas nas últimas décadas. A Loja Mozart é apenas um caso, unindo o líder parlamentar do PSD, outros membros do PSD, com o dono da Ongoing, e antigos e actuais elementos dos serviços de informação, envolvidos num conjunto de escândalos públicos. Mas distritais inteiras do PSD são constituídas por membros das novas maçonarias, que funcionam como estrutura horizontal para criar redes de poder e de negócios. Quanto à componente antimaçónica do PSD estamos conversados. Está defunta.
Mesmo a componente anticomunista do PSD foi-se alterando na actual direcção para uma componente anti-socialista, mais do que anticomunista. A ideologia confusa e híbrida que caracteriza os actuais dirigentes do PSD tem sido descrita como “liberal” ou “neoliberal”. Tenho-me sempre manifestado contra esta classificação que dá demasiada dignidade ideológica a uma mescla de ideias e posições que nada têm de liberal. Se quisermos fazer a distinção sem sentido entre “liberalismo económico” e liberalismo político, rapidamente compreenderíamos que o “liberalismo económico”, a que correntemente se chama “neoliberalismo”, não é liberalismo. O liberalismo, com o seu amor pela liberdade, a sua valorização do indivíduo, a percepção da relação entre a propriedade e a liberdade, a pulsão pela privacidade e pelo direito de cada um definir os objectivos da sua vida, tem muito pouco a ver com a redução do homem ao “homo economicus”, a ditadura estatal do fisco, a burocratização de toda a actividade social para aumentar o controlo do Estado, o desrespeito pelo primado da lei, o encosto aos mais fortes e culpabilização dos mais fracos.
Neste contexto, a apologia do “empreendedorismo”, de uma “economia” onde se fala obsessivamente de empresas e nunca se nomeia os trabalhadores, esta recusa da consolidação de direitos sociais e do melhorismo como objectivo de uma política do bem comum, precisa de um anti-socialismo como alvo, até para exorcizar as origens do próprio PSD. O anti-socialismo é por isso hoje mais corrente nos círculos do poder, porque ajuda a criar um polo antinómico no qual se inclui a ideia de estado social, de investimento público como panaceia económica, do “despesismo do estado”, e de qualquer ideia de intervencionismo estatal nos negócios, mais do que nas empresas.
Ficamos agora com o “pró” que fazia parte da identidade colectiva do PSD (e não só): o sentimento patriótico do “mais português dos partidos portugueses”. É exactamente aqui que existe por parte do actual poder no PSD, um curso que é objectivamente antipatriótico e que assenta em dois processos interligados: a desvalorização das Forças Armadas, tratadas como fardo orçamental que seria vantajoso alijar caso houvesse oportunidade, e a transmissão de soberania nacional para o estrangeiro, a retirada do poder do Parlamento português para definir os orçamentos nacionais, a desvalorização das eleições e da escolha entre diferentes opções com a ditadura da “inevitabilidade” imposta por credores e Bruxelas, a subordinação do Governo e Parlamento nacionais a uma governação europeia definida pelo Conselho e pelo Parlamento Europeu, assente em “directivas comunitárias”, a defesa da caducidade da Constituição (e do poder do Tribunal Constitucional) face à legislação constitucional “não escrita” do direito comunitário, etc., etc.
Resumindo e concluindo, visto que os detalhes ficam para o próximo artigo: a subordinação, à revelia da democracia, da nação e da pátria, da comunidade dos portugueses, a uma estrutura de poder que foi “comunitária” e é hoje antidemocrática, hierárquica e imperial e que se chama União Europeia, subordinada aos interesses nacionais da Alemanha. E o principal executante, teorizador, legitimador, deste processo meio escondido, meio às claras, tem sido o PSD, junto com o CDS e o PS. É por isso que a direita deixou de ser patriótica para ser internacionalista, na versão europeísta.
No fundo, a questão da Pátria resume-se a uma posição simples: o que não fizermos por nós, ninguém o fará.
Mesmo falando de Pátria na sua forma mais minimalista – quase só a defesa dos interesses dos portugueses como portugueses e não como cidadãos da Europa, a defesa da comunidade nacional como história, língua e cultura –, provoca uma enorme irritação nos círculos do poder, PSD e CDS e também no PS.
Este nervoso é, em muitos casos, sentimento de culpa, noutros medo de que uma certa desfaçatez no que se está a fazer não seja aceite pela maioria dos portugueses, se for apresentado sem disfarces, usando os nomes que as coisas têm e falando delas sem as vestes do engano. Querem os portugueses ser uma região da Europa com menos poderes que um länder alemão, com uma política externa, uma política de defesa (Portugal aceitou que aspectos da sua política das Forças Armadas viessem no memorando), e a sua política interna, a começar pelo orçamento e a continuar por uma governação que pouco mais faz do que aplicar “directivas” europeias, seja definida em Bruxelas e em Berlim? Uma parte importante da direita portuguesa que antes enchia o peito com o patriotismo responde sim, nalguns casos por necessidade, noutras por vontade, noutras por serviço.
Há dois aspectos em que este abandono do patriotismo por parte do actual poder político é muito evidente. Um, é o modo como se actua em relação às Forças Armadas, que é mais um sintoma do que uma causa; outra, a política tão deliberada como dolosa de cedência de soberania a instâncias internacionais em que Portugal não tem nenhuma voz, entra mudo e sai calado, como o primeiro-ministro em muitos Conselhos Europeus.
Não vou perder tempo com duas questões que aparecem sempre como justificações, mas que não estão no cerne daquilo que quero discutir. Uma, no que concerne às Forças Armadas, é a denúncia do corporativismo dos militares, que os leva a quererem manter privilégios e estatuto, inaceitáveis no actual (des)equilíbrio social. Sim, é verdade, há corporativismo nas Forças Armadas, mas isso não legitima o que o actual poder está a fazer com elas, independentemente daquilo que possam ser resistências corporativas. A outra é a combinação de uma espécie de realismo cínico, que diz que Portugal nunca foi independente nos últimos quatrocentos anos (as datas variam) e por isso é hipocrisia estar agora a achar anormal aquilo que sempre existiu.
É o argumento de que se Portugal é dependente de facto, por que razão se preocupar por o ser de jure? Até é mais “verdade”, mais transparente que se assuma que os portugueses não mandam nada e que por isso qual é problema que o Parlamento português perca poderes para a Europa? Um subproduto deste raciocínio é que hoje a natureza das nações europeias é partilharem soberania nas instituições da União Europeia, pelo que é um modo de pensar arcaizante, para não dizer antiquado, considerar que as “velhas” ideias de soberania possam ter qualquer papel nos dias de hoje. Seriam, aliás, apenas manifestações de um nacionalismo vulgar e perigoso.
A questão das Forças Armadas é que, estando como estão e como vão estar daqui a uns anos da mesma política, elas não servem mesmo para nada. Não será difícil então apontá-las a dedo como um peso inútil no orçamento. Já o escrevi e repito: os actuais governantes, a começar pelo ministro da Defesa, fechariam o exército, a marinha e a aviação, amanhã se pudessem e iria o Conselho de Ministros vangloriar-se da grande reforma que fez e do dinheiro que poupou. Mas como não pode fazer isso, estraga.
O PSD e o PS têm grande responsabilidade no caminho de progressiva destruição das nossas Forças Armadas. Foi por pressão das “jotas”, com relevo para a JSD, que acabou o Serviço Militar Obrigatório, abrindo caminho para umas Forças Armadas profissionais, que eram mais caras e que rapidamente se tornaram a primeira vítima de cortes, sempre que havia necessidade. As Forças Armadas eram e são, para o actual poder, expendable mesmo quando os governantes se passeiam de peito cheio nas paradas e se dizem umas fases muito patrióticas nos discursos.
No fundo, a questão da Pátria resume-se a uma posição simples: o que não fizermos por nós, ninguém o fará. Podem ajudar-nos, como é suposto ajudarmos os nossos vizinhos, mas o zelo e a dedicação que vem daquele “nós” só nós o temos, ou deveríamos ter. Basta um exemplo. Num falso arroubo de patriotismo, o Governo patrocinou um mapa de Portugal que enchia meio mundo no hemisfério Norte, dominando o Oceano Atlântico a enorme área ocupada pelas ilhas e a sua zona económica exclusiva. Portugal seria assim a grande potência do Atlântico Norte, da costa africana junto de Marrocos, passando pelo pequeno enclave das Canárias, até junto da costa americana. E, na verdade, esse é o nosso território, mas a outra verdade é que só a muito custo conseguimos manter responsabilidades internacionais pela busca e salvamento, pela segurança das importantes rotas marítimas que o atravessam, ou proteger os nossos bens. Estamos por um fio no quadro dos mínimos dos mínimos das nossas obrigações. Uma avaria num helicóptero, uma avaria num avião, um problema de tripulação e um salvamento pode não ser feito, já para não falar do controlo eficaz dessa parte de mar que enche o mapa oficial, em termos de segurança, em termos de exploração de recursos, em termos de defesa do nosso património estratégico. Talvez se pudesse vender, como as praias e as ilhas gregas?
José Pacheco Pereira
Fonte
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